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Pacientes com câncer esperam até 4 meses e não conseguem iniciar tratamento pelo SUS no Ceará

Prazo é o dobro do previsto em lei federal; entidades e gestores apontam queda dos encaminhamentos às unidades de saúde públicas

Já são quatro meses desde que Maria Helena Leite, 39, tocou o seio e sentiu um nódulo. Entre consultas, exames e biópsia, veio o diagnóstico: câncer de mama. Ontem (19), a cearense de Madalena, no Sertão Central, completou 60 dias na fila para iniciar o tratamento – e segue sem previsão de conseguir.

De acordo com a Lei nº 12.732, de 2012, 60 dias são o tempo máximo que um paciente deve esperar até fazer cirurgia ou iniciar quimio ou radioterapia no Sistema Único de Saúde (SUS). O dispositivo, porém, tem sido descumprido.

Pessoas com câncer, entidades de acolhimento e até gestores de hospitais de referência apontam que a rede de assistência à oncologia em Fortaleza e no Ceará “vive uma situação grave”, com pacientes esperando até 6 meses na fila para iniciar terapias.

A situação foi denunciada ao Ministério Público do Ceará (MPCE) e ao Ministério da Saúde (MS) em ofícios enviados pela Rede Cearense de Combate ao Câncer de Mama (Rede Mama), em junho; e pelo movimento Todos Juntos Contra o Câncer (TJCC), no dia 13 deste mês.

O doutor botou pra eu fazer o tratamento no Crio, mas não tem vaga. Liguei pra ele porque eu tava sentindo muita dor e febre, e ele se espantou quando eu disse que ainda não tava fazendo”, conta Helena, que toma analgésicos para amenizar as dores no seio inchado.

O Crio citado por ela é o Centro Regional Integrado de Oncologia (Crio), em Fortaleza, uma das principais portas de entrada para pacientes com câncer no Estado – e que suspendeu o acolhimento de pessoas enviadas pelo SUS, no último dia 11.

O Crio não possui recursos suficientes aportados pela Prefeitura de Fortaleza e não possui recursos por parte do Estado para manter os atendimentos. Ademais, houve uma redução de 20% no repasse das verbas municipais, situação que culminou no caos vivido neste momento”, pontuou o TJCC no ofício enviado ao Ministério da Saúde.

FILA DE ESPERA

Outra paciente que aguarda na fila para iniciar tratamento no Crio é a dona de casa Vera Lúcia Barros, 52, moradora de Itaiçaba, no Litoral Leste. Em fevereiro, após 2 anos ouvindo que as alterações em exames “não eram nada de mais”, ela foi diagnosticada com câncer de mama.

“Fui pra Policlínica de Aracati, e o médico pediu a biópsia. Disse logo que eu fizesse particular, porque pelo SUS ia demorar muito. Juntei filhos e amigos e fiz tudo. Deu câncer e o médico orientou que eu começasse a quimio o mais rápido possível”, relembra.

Além do Crio, a falha no acesso é percebida também no Instituto do Câncer do Ceará (ICC), onde “há uma redução progressiva, desde 2018, do número de atendimentos encaminhados pelo SUS”, como destaca o médico Reginaldo Costa, diretor clínico da unidade.

“Isso traz grande preocupação, porque contrasta com toda a estatística mundial, que relata aumento dos casos de câncer – e não seria diferente pro Ceará e pra Fortaleza. Sendo o ICC a principal instituição de tratamento de câncer, chama atenção a redução expressiva”, diz.

Hoje, o ICC atende um terço do que atendia em 2018, sem que tenha havido nenhuma mudança de infraestrutura. O que observamos é a não chegada dos pacientes. Antes de discussão em torno de repasses, existe a discussão sobre o encaminhamento de pacientes via Central de Regulação”, complementa Reginaldo.

Daniele Castelo Branco, gestora da Associação Nossa Casa e coordenadora da Rede Mama, afirma que o problema na rede de atendimento oncológico no Ceará “é estrutural”, mas se agravou desde outubro de 2022, após mudanças no financiamento da área.

600 pacientes por mês, em média, deixaram de ser atendidos com o fechamento da porta de entrada do Crio, segundo Daniele. A unidade não retornou nossos contatos para se manifestar sobre o assunto.

“Começamos a perceber que as pacientes estavam tendo mais dificuldade de serem encaminhadas pela Regulação pro tratamento, principalmente as do interior do Estado. O retrato que a gente tem é de pessoas na fila há mais de 6 meses, aguardando entre fazer o diagnóstico e iniciar o tratamento”, lamenta.

Gestora de uma casa de acolhimento a pacientes que vêm do interior cearense para se tratar na capital, Daniele relata que “a capacidade é pra acolher 40 pessoas, mas desde outubro só tem 15 a 20 pessoas na casa”.

“Tenho vaga lá, o que é inédito. O comum é ter fila de espera. Vemos claramente que o paciente não tá conseguindo chegar. Nesse cenário, a lei está sendo descumprida pelas próprias secretarias de saúde. Não é que o serviço não tenha vaga, ele não tem é recurso financeiro”, pondera.

FALTA DE RECURSOS

No Ceará, há 9 estabelecimentos habilitados na Alta Complexidade em Oncologia, como lista a resolução nº 16/2023 da Comissão Intergestores Bipartite (CIB):

  • Hospital Geral de Fortaleza (HGF);
  • Hospital Distrital Dr. Fernandes Távora / Centro Regional Integrado de Oncologia (Crio);
  • Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC);
  • Hospital Infantil Albert Sabin (HIAS);
  • Hospital Maternidade São Vicente de Paulo;
  • Hospital Cura Dars;
  • Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza;
  • Hospital Haroldo Juaçaba;
  • Santa Casa de Misericórdia de Sobral.

No documento, assinado pela secretária da Saúde do Ceará, Tânia Mara Coelho, a CIB apresenta um levantamento sobre os custos da assistência oncológica pelo SUS no Estado: em 2022, “o valor do extrapolamento da execução das ações e serviços foi de R$ 95,2 milhões”.

Galeno Taumaturgo, secretário de Saúde de Fortaleza, confirma que o subfinanciamento é o principal e histórico gargalo da assistência. “Temos um déficit anual de quase R$ 60 milhões. Oncologia é prioridade, mas estamos passando muito do valor”, estima.

Fortaleza recebe R$ 100 milhões anuais para o serviço, repassados pelo Ministério da Saúde, mas custeia, em média, R$ 160 milhões. Além disso, metade dos pacientes atendidos na cidade são do interior – e das 9 estruturas de atendimento, 7 estão na capital.

O Ceará amarga, aliás, um déficit de nove estabelecimentos de oncologia públicos: deveria ter 18, um para cada 500 mil habitantes, como determina a portaria nº 140, de 2014, do Ministério da Saúde.

Sayonara Cidade, vice-presidente do Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (Conasems) e secretária de Saúde de Baturité, explica que esses parâmetros estabelecidos pela legislação, baseados em critérios populacionais, não dão conta das necessidades específicas das regiões e precisam ser flexibilizados.

A vice-presidente do Conasems defende que esses parâmetros deem lugar a critérios baseados na necessidade de serviço, dentro do plano integrado de regionalização, para atender aos locais onde existem vazios assistenciais.

Estamos, nesse momento, com o Ministério, estudando as minutas de portaria que estão sendo pactuadas, (entre o) Conasems e o CONASS (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), para flexibilização desse parâmetro. Com isso, vamos conseguir expandir esse número de serviços” – SAYONARA CIDADE Vice-presidente do Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (Conasems) e secretária de Saúde de Baturité

Sayonara também aponta que houve um “aumento exponencial” no número de pessoas sendo diagnosticadas com câncer no Estado. De acordo com ela, isso se deve à melhoria dos serviços de média complexidade. Porém, esse paciente que está sendo diagnosticado mais rapidamente no serviço de saúde de média complexidade não consegue entrar no serviço especializado para tratar a doença.

“É aí onde nós estamos tendo a dificuldade, porque o número de serviço (para tratamento) não expandiu, não acompanhou essa evolução que houve no Ceará”, complementa.

A reportagem também questionou a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) e o Crio sobre quais os motivos para a deficiência no encaminhamento de pacientes às portas de entrada de tratamento; e quais as providências pensadas a curto/médio prazos.

Em nota, a Sesa frisou que “o Hospital Geral de Fortaleza (HGF) é habilitado em alta complexidade em oncologia e atua em diversas especialidades”, e destacou a atuação do Instituto de Prevenção do Câncer (IPC) na “prevenção, rastreamento e diagnóstico do câncer de colo do útero e de mama”.

A Pasta listou ainda os demais hospitais estaduais e conveniados que compõem a rede de assistência, reforçando que “a rede própria atende pacientes com câncer conforme os perfis que lhe são destinados, como cirurgias e quimioterapia”, e que “os demais estabelecimentos de saúde, habilitados pelo MS para serviços de radioterapia, são contratualizados pelo Município para atender a demanda relacionada a esse perfil”.

Ainda na nota, a secretaria ratifica que “está em reestruturação do Plano Estadual de Atenção à Oncologia, a fim de tornar públicos os protocolos, critérios e parâmetros de referência das linhas de cuidados no tratamento de câncer, fortalecendo o processo de monitoramento e avaliação dos serviços na Rede de Atenção à Saúde no Ceará”.

Já o Crio não retornou até a tarde desta quinta-feira (20), quando a resposta da Sesa foi incluída em atualização desta reportagem.

PROVIDÊNCIAS SOBRE O CENÁRIO

Na próxima quarta-feira (26), o MPCE promoverá uma audiência pública sobre a manutenção e ampliação da rede de atendimento oncológico do Ceará. De acordo com o órgão, foram notificados a participar os representantes da(o):

  • Sesa;
  • SMS de Fortaleza;
  • Central de Regulação do Estado do Ceará e do município de Fortaleza;
  • Instituto do Câncer do Ceará (ICC);
  • CRIO;
  • Hospital Geral de Fortaleza (HGF);
  • Hospital Fernandes Távora;
  • Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Ceará (Cosems-CE).

Na última terça-feira (18), o governador Elmano de Freitas anunciou um aporte de R$ 22 milhões em investimentos para o tratamento de pacientes com câncer no Ceará – R$ 10 milhões em convênio com o ICC e R$ 12 milhões em edital a ser aberto para prestadores de serviços hospitalares.

Fonte: Diário do Nordeste 

Foto: Fabiane de Paula 

 

 

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