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Imagem De Vários Pacientes De Em Fila Em Uma Hospital Público

As duas faces da saúde: política social e espaço de desenvolvimento econômico – por José Gomes Temporão

*Por José Gomes Temporão | Membro do Grupo de Trabalho do Movimento TJCC

O tema do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) inscreveu-se definitivamente na agenda da Reforma Sanitária Brasileira e da saúde pública. É, no entanto, ainda pouco conhecido e discutido e, para nos aproximarmos dessa discussão, é necessário destacar o aspecto dual da saúde, que deve ser entendida como política social fundamental para a melhoria da qualidade de vida da sociedade, mas também como espaço de desenvolvimento econômico – e não apenas de gasto ou de alocação de recursos, geralmente escassos, como a economia mais conservadora costuma nos apontar.

Ao mesmo tempo em que se mostra necessária para o bem viver, a saúde é fonte de geração de renda, de investimento e de emprego – emprego, por sinal, mais qualificado do que a média de postos de trabalho dos demais setores da economia. A saúde é também fonte de inovação e de conhecimento estratégico para a quarta revolução tecnológica que está aí. Torna-se necessário, assim, um olhar estratégico através do qual a lógica da inovação e do desenvolvimento se encontre com a dimensão da saúde pública, articulando-se com a dimensão econômica da saúde a partir das necessidades em saúde da população, garantindo a sustentabilidade tecnológica da saúde universal.

O Brasil tem a estrutura produtiva mais importante da América Latina. A Saúde representa entre 8% e 10% do PIB e 10% do trabalho qualificado do país, além de liderar a produção científica nacional – 30% dos gastos em P&D [pesquisa e desenvolvimento] estão na área da Saúde. Essa área lidera a produção científica nacional e é plataforma para novos paradigmas tecnológicas, em química fina, biotecnologia, eletrônica, nanotecnologia, telemedicina, inteligência artificial entre muitos outros campos.

É importante lembrar, ainda, que temos o maior sistema universal do mundo: 75% da população brasileira usam exclusivamente o Sistema Único de Saúde, para atendimento de todas as suas necessidades de saúde. Contamos, também, com uma estrutura de regulação organizada em base nacional, a Anvisa, que está entre as dez melhores agências reguladoras.

No entanto, se temos todas essas macrocondições para lançarmos um olhar diferenciado sobre a saúde no contexto do desenvolvimento, em sua capacidade de estimular a economia e estruturar-se como área estratégica para a quarta revolução industrial, temos também obstáculos: imensas desigualdades sociais e territoriais no acesso à saúde, redução do potencial brasileiro de inovação e aumento da distância tecnológica entre os países. Isso agravado, neste momento, por um governo hostil à ciência.

Alguns números dão uma ideia da brutal situação de dependência do nosso país: em 2020, o Brasil importou algo como 15 bilhões de dólares das indústrias da saúde e exportou cerca de 2 bilhões, o que representa um déficit expressivo na balança comercial setorial, em torno de 13 bilhões de dólares. A área farmacêutica e de vacinas abrange 75% das importações do Complexo Econômico-Industrial; e 90% dos princípios ativos que o país utiliza na produção de medicamentos são importados1. Nos anos 1980, o cenário era bastante distinto: tínhamos uma capacidade de produção interna em torno de 50%, isto é, produzíamos metade dos princípios ativos do que utilizávamos para a produção de medicamentos.

Durante a pandemia de Covid-19, essa dependência evidenciou-se ainda mais: se, em 1999, foram gastos 9 milhões de dólares na importação de respiradores, em 2019, esse gasto foi de 52 milhões, atingindo-se 167 milhões de dólares, em 2020. No que diz respeito à importação de equipamentos de proteção individual, os valores pularam de 740 milhões de dólares, em 2019, para 1,1 bilhão, em 2020. Sem contar que, durante a pandemia, mais de cem países estabeleceram barreiras à importação de tecnologias. Houve momentos de grande dificuldade para o Brasil ter acesso a insumos estratégicos no enfrentamento da pandemia2.

No que diz respeito à produção de saberes, de conhecimento, a situação de assimetria global é dramática. De acordo com dados de 2015, dez países reuniam 88% das patentes em saúde em todo o mundo – Estados Unidos, China, Alemanha, Japão, República da Coreia, Suíça, França, Reino Unido, Países Baixos e Israel3. Em relação às patentes do setor biofarmacêutico, a área, digamos, mais moderna e que mais cresce do ponto de vista da inovação e da produção, 16 empresas – como Bayer, Sanofi, Johnson, entre outras – detêm praticamente 60% das patentes desse setor, que é o futuro da indústria farmacêutica4. Impressiona também observar que 42% do mercado global de medicamentos estão em um único país, os Estados Unidos, seguindo-se Europa (15%) e Japão (10%) – o Brasil tem 1,6% do mercado global5.

Seja no campo biotecnológico, seja no de tecnologias médicas, há um gap que só pode ser enfrentado com maciços investimentos em ciência e tecnologia, exatamente o que não estamos fazendo. O Brasil está indo na contramão; o Sistema Brasileiro de Ciência e Tecnologia vem sofrendo cortes, desde 2016, e é uma das áreas mais atacadas pelo governo que aí está.

Para avançarmos nesse cenário, é preciso superar a situação de dependência e de atraso que se reproduz nos segmentos produtivos da saúde e ampliar a agenda da área, saindo de uma visão estreita, atrasada e mesquinha da saúde como gasto, para incorporar a inovação, a base produtiva, e fortalecer seu papel estratégico inclusive no enfrentamento da crise econômica.

Há um quadro de crescimento da participação no mercado global de produtos de base biotecnológica, vacinas, medicamentos para doenças crônicas e outros, convencionais, de base química. A estimativa é de que o crescimento para os biofármacos se dê em uma faixa anual de 10%, entre 2019 e 2026, enquanto a participação dos produtos biológicos entre os principais medicamentos vendidos no mercado global, que era de 40%, em 2012, já passou para 53%, em 2019, e deverá chegar a 55%, em 20266.

Esse entendimento de que a inovação deve estar no centro do planejamento estratégico já vinha sendo alcançado pelas empresas brasileiras, vide o aumento de sua participação nos gastos em P&D, principalmente, entre os laboratórios farmacêuticos de capital nacional. Isso, por conta de mecanismos de apoio governamental, fruto dos governos Lula e Dilma, como as PDPs [Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo], do Ministério da Saúde, o Profarma, do BNDES, e o Inova Saúde, da Finep – iniciativas que começaram a desmoronar a partir de 2016.

Nesse sentido, cabe destacar alguns marcos estratégicos na trajetória percorrida pelo Brasil.

Marcos estratégicos da trajetória brasileira

Se nos anos 80 tínhamos uma capacidade de produção de cerca da metade dos princípios ativos utilizados na indústria farmacêutica, isso muda a partir do governo Collor, com a abertura das importações, e a situação agrava-se com a aprovação precoce da Lei de Patentes (Lei nº 9.279/1996), que regula os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, o que estrangulou a capacidade brasileira de inovar. A Índia, por exemplo, não procedeu dessa maneira e estruturou uma base farmoquímica importante.

Entre as conquistas registradas depois disso no cenário brasileiro, temos a aprovação da Lei dos Genéricos (Lei nº 9.787/1999), que abriu espaço para os laboratórios de capital nacional crescerem e ampliarem sua participação no mercado.

Em 2004, tem-se a criação da Política Industrial, Tecnológica e de Comercio Exterior, envolvendo quatro setores estratégicos, um deles, o de Fármacos e Medicamentos – ao lado de Semicondutores, Softwares e Bens de Capital.

Em 2007, em minha gestão como ministro da Saúde, o Brasil quebrou pela primeira e única vez a patente de um medicamento, o antirretroviral Efavirenz, para tratamento de pessoas com HIV/Aids, uma iniciativa que alcançou repercussão mundial.  O Brasil foi o primeiro país a universalizar o fornecimento de antirretrovirais para todos os pacientes com HIV/Aids. Esse licenciamento compulsório, nos permitiu avançar por mecanismos de engenharia reversa, com vistas à internalização da capacidade produtiva desse medicamento na Fundação Oswaldo Cruz.

Em 2008, ainda em minha gestão, criamos o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde, o GECIS, no qual tinham assento sete ministérios, sob a coordenação do Ministério da Saúde, com participação da indústria farmacêutica. O objetivo era articular as ações de fortalecimento e fomento do CEIS e definir produtos prioritários para a internalização da capacidade de produção. Esse grupo foi extinto no atual governo, dentro da proposta de extinção de qualquer iniciativa voltada a articulação, integração e intersetorialidade.

Tradicionalmente, o tema do desenvolvimento econômico vinha sendo tratado no âmbito dos ministérios da área Econômica e do Comercio Exterior. No entanto, inserir a área da Saúde nas iniciativas foi o eixo do meu plano de ação como ministro, de 2007 a 2010. A política pública passou a coordenar não só o debate como a formulação, implementação e execução de ações voltadas ao Complexo Econômico-Industrial da Saúde. A integração do BNDES como órgão de fomento, criando-se dentro do banco um departamento para o CEIS; a criação da Conitec – Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde –, formalizada em lei em 2014, para coordenação das ações de incorporação de tecnologias no SUS; a reforma da assistência farmacêutica no SUS, em 2006, incluindo os programas Farmácia Popular e Aqui Tem Farmácia Popular; as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), envolvendo produtores privados e laboratórios públicos, com vistas à sustentabilidade econômica e tecnológica, foram algumas dessas ações. Em 2003 foi criada também a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde.

Em 2010, aprovamos uma lei importante (nº 12.349), que mudou a Lei de Licitações, utilizando-se a margem de preferência em licitações públicas para produtos nacionais. E, em 2012, um programa voltado ao fortalecimento da rede de laboratórios oficiais e da infraestrutura de produção e inovação em saúde do setor público.

Havia, assim, um olhar estratégico, voltado à ampliação do acesso, redução da dependência e estímulo ao desenvolvimento articulado da saúde, no núcleo duro das políticas de Estado. Isso também muda a partir de 2016.

Por meio das PDPs, buscou-se aumentar a capacidade do país produzir e se desenvolver, utilizando-se o poder de compra do Estado como principal ferramenta para a redução da vulnerabilidade e ampliação da capacidade endógena. Isso foi central no caso da saúde, como é possível observar a partir de alguns dados: no caso de medicamentos, as compras públicas representam 35% do mercado total e 90% do mercado de drogas de alto custo; 95% das doses de vacinas consumidas no país vêm de compras públicas, assim como cerca de 50% dos equipamentos e 60% dos testes para diagnósticos. Em 2018, 30% do orçamento público destinaram-se a gastos com assistência farmacêutica.

Mais recentemente, tivemos o exemplo de inovação na política de compras públicas, como a parceria entre a Fiocruz, a Universidade de Oxford e empresa inglesa Astrazeneca, para internalização da produção da vacina contra a Covid-19. Nessa modalidade de compra – chamada de encomenda tecnológica (ET) –, o Estado decide correr um risco, estabelecendo parceria com uma empresa privada para aquisição de tecnologia ainda em fase de teste – como no caso da vacina que ainda estava em início de Fase 3.

Os resultados podem ser positivos ou negativos. Mas, dando certo – e deu! –, o Estado passa a deter a tecnologia para realizar a produção em sua totalidade. No caso da parceria Fiocruz-Oxford-Astrazeneca, a Fiocruz, em um primeiro momento, desenvolveu a vacina importando o princípio ativo e realizando as últimas etapas tecnológicas – envase e controle de qualidade. A partir de agora, o desenvolvimento e produção passam a ser totais, e já foi registrado na Anvisa o primeiro lote de vacinas em que o IFA foi desenvolvido e produzido totalmente na Fiocruz, por meio de transferência tecnológica. Isso em prazo absolutamente recorde.

Esse processo levou a Fiocruz a outro patamar tecnológico no campo das vacinas. E a tecnologia envolvida nessa produção poderá ser de grande utilidade no desenvolvimento de outros imunizantes e no tratamento de outras doenças, infectocontagiosas e crônicas.

O Brasil tem 18 laboratórios públicos, uma realidade singular – ainda que nem todos tenham a mesma dimensão e a mesma capacidade produtiva, não deve haver país que disponha de uma estrutura de produção pública assim. É preciso, então, enfrentar os problemas – complexos – estruturais, tecnológicos, de modernização administrativa, de capacidade produtiva, para que esses laboratórios sejam de fato partícipes no esforço de redução da dependência brasileira.

Valorizar a dimensão produtiva da saúde como estratégia de Estado, sua importância do ponto de vista econômico, o peso que tem no PIB, sua capacidade de produzir empregos, é fundamental para fazer frente a esse cenário e reduzir a vulnerabilidade tecnológica do SUS

O Ceis e o SUS

Na discussão sobre o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, é preciso levar em conta o desafio da sustentabilidade tecnológica do SUS. É muito difícil falar em universalidade sem que a base produtiva dialogue com as necessidades de saúde da população. Nesse sentido, a extrema dependência tecnológica brasileira ficou evidente em 2020/2021, com a pandemia. O Brasil ficou de joelhos em relação à demanda por medicamentos, biofármacos, insumos, equipamentos de proteção individual. Valorizar a dimensão produtiva da saúde como estratégia de Estado, sua importância do ponto de vista econômico, o peso que tem no PIB, sua capacidade de produzir empregos, é fundamental para fazer frente a esse cenário e reduzir a vulnerabilidade tecnológica do SUS.

Evidentemente, não se trata de pensar que o Brasil precisa produzir tudo o que consome – nenhum país do mundo faz isso. Estamos nos referindo às tecnologias essenciais e estratégicas para a saúde pública. Para isso, são necessárias iniciativas como ampliação pesada dos investimentos em C&TI, fortalecimento dos órgãos de fomento, como BNDES e Finep, aperfeiçoamento da legislação de compras governamentais na Saúde, sempre levando-se em conta o poder de compra do Estado e estimulando-se abordagens inovadoras como as já citadas encomendas tecnológicas.

O Brasil tem enorme potencial e todos os componentes para reduzir promover o encontro da política de saúde, com as políticas industrial e de inovação e reduzir sua vulnerabilidade. Para ilustrar esse olhar distinto sobre a relação entre desenvolvimento e saúde, seguem-se citações, de dois economistas, o austríaco Joseph Schumpeter e o brasileiro Celso Furtado.

“Normalmente se vê o problema de como o capitalismo administra as estruturas existentes, enquanto o relevante é saber como ele as cria e as destrói”. O desenvolvimento deve ser visto pelo “vento perene da destruição criadora (…), não pode ser compreendido (…) sob a hipótese de que existe eterna calmaria (Schumpeter, 1964).

“O desenvolvimento econômico pode ser definido como processo de mudança social pelo qual o crescente número de necessidades humanas, pré-existentes ou criadas pela própria mudança, são satisfeitas através de uma diferenciação no sistema produtivo, gerado pela introdução de inovações tecnológicas (Furtado, 1964).

 

* Ex-ministro da Saúde e pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz). Artigo produzido a partir da exposição realizada no webinário Complexo Econômico-Industrial da Saúde no contexto da pandemia, em 23/02/2022.

 

Referências

1. Gadelha et al. Dinâmica Global, Impasses do SUS e do Ceis como saída estruturante da crise. Em: O Complexo Econômico-Industrial da Saúde 4.0 no contexto da Covid-19. Cadernos do Desenvolvimento 16 (28), 2021. Disponível em: http://www.cadernosdodesenvolvimento.org.br/ojs-2.4.8/index.php/cdes

2. Ibidem

3. Gadelha et al, 2021. Global Inovation Index, 2020.

4. Gadelha e Vargas, 2021 (no prelo).

5. IqVia, 2021. Disponível em https://www.iqvia.com/locations/brazil. 

6. Gadelha et al, 2021 (no prelo), a partir de dados da Evaluate-Pharma, 2020.

 

 

Fonte: CEE/Fiocruz

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